OPINIÃO

CONSÓCIOS

Terça, 03 Setembro 2019 13:21

Novas Mídias, Redes Sociais, Lawfare e Fake News: Os desafios da regulação do acesso à informação

(Palestra proferida no III colóquio da Comissão de Direito Constitucional: Liberdade de informação e imprensa, avanços, desafios e limites no estado democrático.

“Todo o mundo é visível menos aquele que se encontra atrás das câmeras! A contestação às opiniões emitidas pela televisão não é ouvida. Sede de uma comunicação imaterial, o centro de produção de imagens foge a qualquer controle. As Câmeras podem entrar em toda parte... salvo nas sedes das grandes empresas de mídia”. (Garapon, Antoine)


I - Notícias falsas e fake News
Fake News são notícias falsas publicadas por veículos de comunicação como se fossem informações reais.

Esse tipo de texto, em sua maior parte, é feito e divulgado com o objetivo de legitimar um ponto de vista ou prejudicar uma pessoa ou grupo (geralmente figuras públicas).

A novidade não são as notícias falsas. Mas, o poder viral das fake News em face do surgimento das novas mídias. Assim, são as novas mídias que possibilitaram o grande poder viral das notícias falsas. Com o avanço tecnológico e maior intercomunicação entre pessoas e grupos as notícias falsas se espalham rapidamente.

As informações falsas apelam para o emocional do leitor/espectador, fazendo com que as pessoas consumam o material “noticioso” sem confirmar se é verdade seu conteúdo. E por isso as fake News têm maior apelo que as notícias verdadeiras ou aquelas que demandam raciocínios e formulação de juízos.

Pesquisadores tentam estabelecer uma relação entre o poder de persuasão das fake News e o grau de escolaridade dos seus destinatários. Mas, a escolaridade não limita o poder de crença. Cada pessoa crê naquilo que lhe é conveniente e isto independe de grau de escolaridade, poder econômico ou status. Os indivíduos tendem a crer no que lhes convém. 

Embora as notícias falsas sempre tenham existido, o termo fake News ganhou força mundialmente em 2016, com a corrida presidencial nos Estados Unidos, época em que conteúdos falsos sobre a candidata Hillary Clinton foram compartilhados de forma intensa pelos eleitores de Donald Trump.

No Brasil, a partir do mesmo período, notícias falsas com utilização de robôs para suas difusões, foram largamente utilizadas visando ao impeachment da presidenta Dilma e para a condenação de políticos que não mais se encontravam nas graças das oligarquias nacionais. Nas eleições de 2018 foram largamente utilizadas e possibilitou a eleição de Jair  Bolsonaro. O Tribunal Superior Eleitoral se dispôs a apurar tais ocorrências, mas não se tem notícia de qualquer providência tomada com efetividade.

As fake News sempre existiram. O termo é novo, assim como o modo de propagação. Atualmente dizemos que fake News é boato de grande circulação.

As fake News muito se prestam ao lawfare.  Lawfare é a utilização da lei e dos procedimentos legais pelos agentes do sistema de justiça para perseguir quem seja declarado inimigo.

A imprensa, e a opinião pública formada a partir do seu noticiário, tem grande influência sobre os julgadores. Pesquisas comprovam que os processos que são noticiados pela mídia são julgados em menor tempo que aqueles com os quais a mídia não se ocupa. Da mesma forma, pesquisas indicam que os resultados dos julgamentos noticiados têm alto percentual de concordância entre a opinião publicada e a opinião pública, formada a partir da concepção midiática. Isto demonstra que os juízes, ainda que inconscientemente, são levados a formar seus juízos pelo que a mídia lhes informa. Não raro, durante julgamentos em órgãos colegiados é possível ouvir ‘discursos’ sobre concepções e fatos não constantes dos autos dos processos e que são fundamentais nas razões de decidir. Juízes deveriam expressar juízos e não opiniões. Mas, não raro emitem opinião, durante julgamentos, sem poderem declarar onde obtiveram tais ciências. E, autorreferentes, tratam o que expressam como fato notório. Salete Macalóz, em tese de doutoramento, estudou tal fenômeno.

II – Primeiro parlamentar cassado e falsa notícia
O primeiro parlamentar cassado por falta de decoro parlamentar no Brasil foi o deputado Edmundo Barreto Pinto (PTB-DF), que perdeu o mandato em 27 de maio de 1949. Ele se deixou fotografar de smoking e cuecas pela revista O Cruzeiro, em 1946. 

As fotos de um ensaio chamado "Barreto Pinto Sem Máscara” flagram o deputado de sunga na praia e, em outro registro, de cueca samba-canção e terno.

O deputado disse ter sido enganado pelo jornalista David Nasser que lhe havia prometido que a foto seria publicada na revista apenas da cintura para cima. Mas, a matéria, ao contrário, fazia supor que o deputado era um exibicionista em contraposição aos valores morais da época. O fotógrafo foi Jean Mazon.

O próprio jornalista e o fotógrafo, posteriormente, declararam que o deputado não sabia que a foto seria publicada de corpo inteiro e que a matéria fora recortada para tratar tão somente de sua intimidade e escandalizar os leitores.

Barreto Pinto morreu em março de 1972 sem jamais ter conseguido esclarecer que não havia propiciado matéria na qual expusesse, exclusivamente, sua intimidade e que o conjunto de fotografias que permitira tirar, incluindo de sunga na praia, fazia parte de outras muitas que retratavam a inteireza de suas atividades. Embora as fotos fossem verdadeiras, a matéria focava exclusivamente na intimidade de Barreto Pinto, como se somente disto ele tivesse tratado, e neste sentido era uma falsa matéria.

III – Cartas injuriosas atribuídas a Artur Bernardes
O episódio das cartas atribuídas ao candidato à presidência Artur Bernardes, injuriosas ao Marechal Hermes da Fonseca e ao Clube Militar, é outro episódio no qual notícias falsas difundidas pelos empresários de comunicação podem causar danos aos interesses públicos.

No caso das “cartas de Artur Bernardes” até mesmo falsa perícia atestou serem de autoria dele, o que não impediu a declaração de sua vitória eleitoral (embora Nilo Peçanha tenha tido efetivamente mais votos), mas que demandou governasse de 1922 a 1926 sob estado de sítio.

Artur Bernardes passou à história como se fosse um fazendeiro despreparado para o exercício da presidência da República. Mas, ao contrário, foi o precursor do investimento na agropecuária brasileira e nos estudos para a separação entre solo e riquezas do subsolo. Seu projeto contrariava os interesses imperialistas representados por Percival Farquhar. Hoje sabemos que as cartas não eram de sua autoria.

IV – Monteiro Lobato e Zé Brasil
Com o fim do Estado Novo e convocação das eleições, Monteiro Lobato escreveu uma cartilha apoiando a candidatura de Luiz Carlos Prestes ao Senado, pelo PCB.

A cartilha eleitoral elaborada por Monteiro Lobato trazia um personagem, Zé Brasil, que representava o matuto e cujos interesses se contrapunha aos do Coronel Tatuíra.

O livro é construído em forma de diálogo do personagem principal, Zé Brasil, com um anônimo. A narração faz referência aos condicionamentos sociais da questão agrária no Brasil, sendo o Zé Brasil um mineiro que sofre com a realidade latifundiária.

Coube à polícia apreender a edição e imprimir um falso livro com similar narrativa, mas onde o autor recomendava que não se votasse no candidato comunista.

Neste episódio, mais uma vez, coube aos agentes do Estado difundir notícia falsa durante período eleitoral.
 
V - Redes sociais e novos atores da comunicação
Diversamente da mídia tradicional, composta por jornais, rádios e televisão, e que ao sabor dos interesses dos governos ou dos interesses ideológicos ou empresariais dos seus proprietários, que dominaram o processo de produção de notícia ao longo do século XX, no final deste século, decorrente da revolução tecnológica ou científico-tecnológica (Santos, 1983) surgiram novos meios de difusão de mensagens gráficas, de sons e imagens, que possibilitaram a recíproca e coletiva relação comunicacional, constituindo redes sociais. 

A possibilidade de intercomunicação entre pessoas por meios eletrônicos, com recíproca emissão e recepção de mensagens, hoje majoritariamente por meio do Twitter, Instagram, WhatsApp e Facebook, e facilitada pelo advento da internet de banda larga teve outros precursores, dentre os quais o mIRC.

O mIRC é o precursor das conversas online e permitia o contato com pessoas de todo a parte do mundo. Criado em 1995 possibilitava que os usuários se conectassem por meio de canais específicos, chamados salas. Os canais ou salas eram classificados de acordo com o assunto, possibilitando a troca de mensagem escrita, sem recursos audiovisuais. No Brasil, o mIRC se popularizou em 1998, mas foi vencido pelo concorrente ICQ por volta de 2004 e das salas de bate-papo. ICQ é um acrônimo decorrente da pronúncia das iniciais do termo inglês “I seek you” ou “eu procuro você”. O ICQ foi substituído posteriormente pelo MSN. Outra rede já em desuso é o Fotolog ou flog. Tratava-se de processo de compartilhamento de imagens, com estrutura similar aos atuais blogs. Mas, as redes sociais atuais mais se assemelham ao Myspace, por possibilitar o compartilhamento de mensagens, fotos, perfis e blogs postados em um só lugar na rede. Uma outra rede de comunicação social que possibilitava a intercomunicação de indivíduos foi o Orkut que permitia ao usuário, mediante convite de outro, postar um perfil, adicionar fotos, deixar e receber recados, formular depoimentos e construir comunidades dos mais variados temas.

Tais meios, no entanto, experimentaram a decadência em decorrência da popularização do Facebook. O rápido crescimento do Facebook fez com que muitos dos usuários das demais redes, notadamente, MySpace e Orkut, delas migrassem e abandonassem seus perfis. Tais usuários tanto imputam às “velhas redes” a existência de publicidade exagerada quanto melhores meios de comunicação da nova rede. Diferentemente do Facebook no qual o usuário tem um perfil postado na rede mundial de computadores e no qual adiciona “amigos” que solicitam adição ou a quem o titular envia solicitação, o Twitter é um microblog que permite ao usuário enviar mensagens de texto de até cento e quarenta caracteres, conhecidos como “tweets”. As mensagens tanto podem ser remetidas por meio do website quanto por meio de mensagens telefônicas, ou SMS. As mensagens são exibidas para todos os “seguidores” do remetente em tempo real. “Seguidores” são pessoas que se tenham habilitado junto ao titular do perfil.

As mais recentes mídias sociais são o Instagram e o WhatsApp. Este era um importante difusor das fake News. Mas, a corporação que o titulariza limitou o envio de mensagens a cinco destinatários. Isto reduziu sua capacidade de difusão de notícias falsas e o uso de robôs para a propagação.

As redes sociais têm se mostrado eficiente mecanismo de mobilização de massa em lugares onde os meios de comunicação ou mídias tradicionais estejam concentrados. Trata-se de meio de mobilização contemporâneo e que tem sido apresentado como importante veículo para a aglutinação de forças sociais que de outro modo teriam maior dificuldade para a interação. Mas, se tais meios são importantes do ponto de vista da comunicação social, não podem ser tomados como o elo que propicia a aglutinação. A possibilidade de comunicação multidirecional é facilitada pelas novas tecnologias, notadamente pelas redes sociais de comunicação, mas, isto não é tudo. A mobilização não se cria sobre uma retórica vazia ou apenas pela exploração de temas que toquem individualmente os participantes da rede. A rede facilita a mobilização a partir de elos socialmente estabelecidos.

VI – A formação dos oligopólios de comunicação no Brasil
A constituição de oligopólios de comunicação, que opusera os interesses de Assis Chateaubriand aos de Adhemar de Barros nos anos 40, se repetiu quando o Banco do Brasil concedeu financiamento a Samuel Wainer para fundar o jornal Última Hora.

A criação de uma empresa de comunicação com empréstimo público foi o mote para a campanha contra Getúlio Vargas, por Assis Chateaubriand, dos Diários Associados e de Roberto Marinho, do jornal O Globo e que levaria aquele presidente ao suicídio.

Estava em jogo a existência de veículo de comunicação que poderia disputar as verbas públicas em contrapartida ao apoio ao governo. Carlos Lacerda, dono do jornal Tribunal da Imprensa, aderiu à campanha que se fez contra Getúlio Vargas e teve amplo espaço na TV Tupi e na Rádio Globo.

“Depois de uma intensa campanha contra sua administração – empreendida no rádio pelas emissoras de Assis Chateaubriand e pela Rádio Globo, da família Marinho – agravada pelo atentado contra Carlos Lacerda na Rua Toneleros, em Copacabana, Getúlio Vargas suicidou-se em agosto de 1954”. (Moreira, 1998:54).

Assis Chateaubriand, que titularizou a maior rede de veículos de comunicação no território nacional e foi o responsável pela introdução da televisão no Brasil, igualmente era devedor do erário público ou das empresas constituídas pelo Estado (Moraes, 1994) ao tempo que acusava Getúlio Vargas do empréstimo a Samuel Weiner.

As dívidas de Assis Chateaubriand com o poder público já vinham de longa data. O interventor de Pernambuco, após a Revolução de 1930, Carlos de Lima Cavalcanti, após demitir seu tio para se defender dos ataques do empresário-jornalista, distribuía nota à imprensa na qual o acusava de haver recebido pessoalmente, por meio de seus jornais, quase uma centena de contos do erário de Pernambuco, e que se destinavam a “comprar a pena” dos seus jornais e propiciar noticiário favorável ao governador deposto Estácio Coimbra.

Diante dos documentos apresentados, Chateaubriand não negou, “ao contrário, afirmou com surpreendente candura que aquilo não era imoral nem ilegal, mas uma prática comum, e que seus jornais não eram os únicos a receber tais pagamentos” (Moraes, 1994: 257).

Além de confessar a prática de pagamento por notícias favoráveis, que julgava comum entre os jornais e os governos, disse que todos recebiam dos governos de Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo e contou como se realizava a operação para transformar em notícia as mensagens dos governos dos Estados.

“Algumas vezes essa mensagem era dada na íntegra, outras vezes em tópicos. O pagamento feito a nós era feito igualmente ao Jornal do Comércio, ao Correio da Manhã, a O Globo, ao Estado de S. Paulo e aos demais jornais que inseriam as mensagens”. (Moraes, 1994: 257).

O pacto coronelista que possibilitou a governabilidade na 1.ª República também se estendia às empresas de comunicação. Não o era coronelismo eletrônico, pois inexistindo eletrônica e veículos de radiodifusão de sons e imagens não tinham esta característica. Mas, já era pacto de proveito entre o poder público demandante de acalentar a opinião pública e as empresas ou empresários da comunicação, travestidos de jornalistas.

VII – Fake News e antecipado desejo de crença
O problema das falsas notícias, dos boatos ou do poder viral propiciado pelas novas mídias não está especificamente neles. Decorre sobretudo na aptidão para crença propiciada por fatores diversos.

As manifestações de junho de 2013 decorreram de desagrado com as instituições e com as autoridades que a sociedade brasileira já experimentava. Os R$ 0,20 de aumento na passagem de ônibus, a tentativa de derrubada do prédio do antigo Museu do Índio, o sequestro, tortura, execução e desaparecimento com o corpo do pedreiro Amarildo foram apenas a gota d´água para que a sociedade se manifestasse. 

Em 19/05/2013, domingo, um boato foi difundido no subúrbio da cidade do Rio de Janeiro dizendo que o pagamento do programa Bolsa Familiar seria suspenso no dia seguinte. Milhares de pessoas saíram de suas casas em direção aos caixas eletrônicos da Caixa Econômica Federal para sacar os saldos em suas contas.

Na medida em que os valores existentes nos cofres dos caixas eletrônicos iam acabando as pessoas rumavam para outras agências e assim sucessivamente pelos diversos bairros da Zona Norte da cidade.

Ao final do dia, quando não mais havia dinheiro nos caixas, as pessoas passaram a depredar as máquinas e as agências.

O ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, demonstrando sua inaptidão para o cargo e incapacidade de compreensão dos fenômenos sociais, determinou à Polícia Federal instaurasse inquérito para apurar a difusão do boato.

Mas, não era a falsa notícia sobre a suspensão do pagamento da Bolsa Família que deveria ter sido objeto da preocupação. Deveria ter sido o fato de existirem milhares pessoas que duvidavam do governo a ponto de saírem de suas casas num domingo e disporem a andar por bairros seguidos para sacar o que já lhes havia sido creditado.

A descrença dos beneficiários do Programa Bolsa Família e suas capacidades de crerem no boato é que deveria ter sido objeto de preocupação do governo. Mas, tal como em 2013 optou-se pelo modelo repressivo e o grupo que governava o país não foi capaz de criar as bases suficientes para lhes garantir legitimidade e manutenção nos cargos.

A fake News encontrou na descrença campo fértil para sua difusão.

VIII – Mídia corporativa e mídias sociais
Se as mídias sociais são importantes para a difusão de fake News as mídias corporativas o são igualmente.   A diferença se encontra na centralização que têm as empresas de comunicação e suas capacidades de interromper a difusão ou até mesmo desmentir quando seus interesses são contemplados.

Nas eleições presidenciais de 2010, que foi objeto de estudo que fizemos para doutoramento em Ciência Política, algumas fake News foram abusivamente difundidas no noticiário televisivo.

Em 11/09/2010 o programa eleitoral de um candidato a presidente pela oposição denunciou prática de tráfico de influência no âmbito do Gabinete da Casa Civil da Presidência da República.

O Jornal Nacional, da Rede Globo, noticiou exaustivamente o assunto nos dias 13, 14, 15, 16, 17, 18, 20, 22, 23, 25, 28 e 29 de setembro. O candidato da oposição tratou do assunto nos dias 18 e 21 de setembro. A campanha da oposição foi feita pelo Jornal Nacional. 

Tal noticiário possibilitou a realização do 2º turno nas eleições presidenciais de 2010. A variação da posição dos candidatos nas pesquisas pode ser mensurada a partir de tal noticiário. 

Encerrado o 1º turno das eleições o assunto deixou de ser tratado no Jornal Nacional.

Iniciada a campanha para o 2º turno em 2010 o candidato da oposição voltou ao assunto, que parecia esquecido, no dia 09/10. 

O Jornal Nacional retomou o assunto em 11, 14, 18, 19 e 25 de outubro. O candidato da oposição tratou do assunto nos dias 13, 16, 17, 18, 19, 20, 21 e 26 de outubro.

Encerrada a campanha eleitoral o assunto não mais foi objeto de matéria do Jornal Nacional até que no meado de 2011, em 17 segundos, o apresentador William Bonner noticiou o pedido de arquivamento dos inquéritos instaurados contra a ministra Erenice Guerra que fora farta e indevidamente acusada durante o período eleitoral de 2010. 

IX – Lawfare, fake News, redes sócias e mídia corporativa 
Em 03/04/2018 o Jornal Nacional dedicou quase toda a sua edição para pressionar o Supremo Tribunal Federal (STF) a votar contra Lula. Era véspera do julgamento. O JN se encerrou noticiando o tuíte do comandante do Exército, general Villas Boas, alusivo ao julgamento do ex-presidente.

Na madrugada de quinta-feira (05/04/2018), o STF por 6 a 5 negou o HC a Lula que visava a impedir a execução da pena até que ocorresse o trânsito em julgado da sentença condenatória. Na sequência, mais recursos foram negados no STJ e no STF, tendo como justificativa a “opinião pública”. Naquela mesma quinta-feira, o atual ministro da justiça Sérgio Moro, então juiz, determinou a prisão, que aconteceu no sábado seguinte.

Não apenas as fake News, mas o ajuste entre julgadores e empresas de comunicação é golpe no Estado de Direito em prejuízo da sociedade e da democracia em construção.

Os juízes gozam das garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos precisamente para poderem atuar contramajoritariamente em casos nos quais os sentimentos momentâneos de certos estamentos sociais possam expressar tirania sobre a minoria ou sobre um indivíduo.

É por isso que o título dos direitos e garantias fundamentais da Constituição da República elenca os direitos individuais no artigo 5º. Direitos individuais são direitos do indivíduo, mesmo contra a vontade da maioria ou de todas as outras pessoas. De julgamentos por sentimentos da maioria já nos bastam os de Sócrates e de Cristo.

É uma pena que muitos magistrados ingressem no Poder Judiciário sem nunca terem lido o livro de John Stuart Mill, Sobre a Liberdade. Isto lhes retira a possibilidade de saberem o papel que ocupam no sistema de separação de poderes.

Se é para fazer valer o sentimento da sociedade, então não precisamos de Constituição, leis ou julgamentos. Tampouco de juízes com garantias. Bastaria entregar os acusados ao linchamento ou à clemência popular. Quando tal sentimento popular é aguçado pelo noticiário tendencioso é pior ainda.

Neste caso, a opinião pública passa a se confundir com a opinião do editorial ou opinião publicada. Estamos vendo a recorrência destas situações. Uma delas ocorreu quando o então juiz Sérgio Moro publicizou conversas telefônicas captadas ilegalmente para insuflar o clamor popular. Uma ilegalidade ocorreu na captação e a outra na divulgação. Mas, tudo estava à margem da lei, pois o objetivo da divulgação era manipular o sentimento popular. E havia tribunais que referendavam as ilegalidades do “juiz delituoso”.

A outra ocorrência foi quando da determinação da prisão para execução provisória da sentença penal não transitada em julgado, imposta de forma discutível ao ex-presidente Lula. Analisando a sequência dos atos processuais vê-se que entre alguns deles, em alguns casos, transcorre apenas um minuto. A sensação que se tem é que tudo foi feito com celeridade para que se pudesse noticiar no Jornal Nacional. Os procuradores e o juiz da “Operação Lava Jato” estavam a serviço de interesses político-partidários e a mídia corporativa fazia parte do conluio.

O judiciário tem modo próprio de funcionamento e precisa preservá-lo. Não podemos transformar os julgamentos em programas de auditório. Não pode, o judiciário, se transformar em executor de lawfare. 

As empresas de comunicação, como atuam no Brasil, são uma excrescência política e institucional e um risco à democracia. Ora promovem os parceiros em suas empreitadas, ora desqualificam aqueles que se opõem aos seus interesses.

A mídia corporativa tem o papel de mediar-se entre os fatos e o público, informando-o das ocorrências havidas em lugares diversos. Só que deixaram de fazer isso. A notícia virou mercadoria e as empresas de comunicação, como qualquer outra, objetivam lucro. Além disso, para defender os seus interesses econômicos, passaram a atuar como partido político, sem se subordinar às regras da política. Lamentavelmente, agentes públicos que não têm dimensão dos seus papéis, além da pusilanimidade, se subordinam à atuação de grupos interessados e descomprometidos com os conceitos de República, Estado de Direito e Democracia.

Então, o problema não são as mídias sociais. A mídia corporativa tem igual capacidade de causar danos e difundir fake News.

As Organizações Globo, por exemplo, não só apoiaram o golpe de 1964, que nos levou à ditadura empresarial militar, como foram coautoras. O fundador do jornal, Irineu Marinho, esteve ao lado dos tenentes em 1922. Seus sucessores mantiveram os contatos e atuaram juntos nos movimentos de 1930, 1945, 1954, 1955, 1961 e finalmente em 01/04/1964. As Organizações Globo e os militares do movimento tenentista, que desfecharam o golpe de 1964, foram sócios nas empreitadas contra a democracia ao longo do século XX.

O primeiro canal de televisão das Organizações Globo foi outorgado por Juscelino Kubitscheck em 1959, que deveria ter sido a TV Nacional ao lado da Rádio Nacional. O segundo, por João Goulart, que pensou em agradar para evitar ser derrubado.

Mas, a emissora somente entrou no ar em março de 1965, com dinheiro do Grupo Time-Life.

Joe Wallach, o executivo estadunidense que representava os interesses da Time-Life no início da atividade da emissora diz, em seu livro Meu Capítulo na TV Globo, escrito depois que voltou aos EUA, que o capital da máfia expulsa de Cuba depois da Revolução foi investido em empresas de comunicação na América Latina. Mas, não cita o nome de nenhuma empresa brasileira.

As empresas de comunicação fazem negócios e não jornalismo. Se fosse o contrário teriam comprometimento real com a liberdade de expressão e a democracia. Veja bem. Para forçar a negação do habeas corpus a Lula, o Jornal Nacional mostrou o caso de um HC deferido pelo STF que levou à prescrição de um homicida. Uma conduta absolutamente leviana, pois tentou induzir a opinião pública a pensar que os recursos às instâncias superiores representam a impunidade.

Ora, se este é o problema, basta que os ministros viajem menos, façam menos palestras remuneradas, cuidem menos de outros interesses e julguem com mais celeridade. Dos juízes profissionais e concursados da 1ª instância se exige isso. Poder-se-ia também alterar a lei que rege a prescrição, suspendendo o prazo prescricional enquanto perdurar recurso da parte a quem interessa. Para piorar, na véspera do julgamento do HC no Supremo, a Globo usou a nota do comandante do Exército para incitar à atuação militar.

Se a mídia corporativa tivesse realmente compromisso com a democracia, não deveria ter repercutido a indevida manifestação do comandante do Exército ou a deveria tê-la repudiado.

No dia 27 de março de 2018, a caravana do ex-presidente Lula foi atingida por três tiros de arma de fogo numa estrada do Paraná. A mídia corporativa tratou os atos de intolerância, violentos, praticados contra a caravana do ex-presidente Lula como fato sem a menor importância. A mídia não deu destaque a este ato de truculência política. Recaíram num dos padrões de manipulação da grande imprensa, que é tratar um boi como um bife. Só que os atos contra a caravana de Lula são tão graves, que têm precedentes apenas nos piores momentos da nossa história.

A mídia faz isso também com os trabalhadores rurais sem terra. Quando eles fazem caminhadas com seus instrumentos de trabalho são tratados como grupo violento e armado e o assunto noticiado ao lado de crimes, no bloco televiso destinado a este assunto ou na página do jornal onde crimes são noticiados. Mas, os senhores rurais e do “mercado de terras” obstruíram as vias públicas com seus tratores e caminhonetes financiadas por crédito rural público do Banco do Brasil, atiraram objetos na caravana e foram tratados como manifestantes. Uma senadora sulista parabenizou os vândalos e no dia seguinte a caravana foi alvejada por tiros.

Atirar objeto, como pedras e ovos, em um veículo é crime. A lei trata apenas de transporte público. É crime definido no art. 264 do Código Penal. No caso da caravana do ex-presidente Lula, era ônibus fretado. Por isso não se pode tipificar neste dispositivo legal. Mas, o fato é similar ao descrito no crime. O que muda é tão somente que o ônibus no qual se joga pedra é fretado e a lei somente pune quando é transporte público. Disparo em via pública é crime. O disparo contra pessoa, se consumado e ela morre, é homicídio. Se o disparo não atinge a pessoa ou se ela não morre, é tentativa de homicídio.

A polícia também minimizou e apurou o fato como disparo de arma de fogo em público, quando o que se teve foi homicídio na sua modalidade tentada. O que tivemos nos disparos de arma de fogo contra o ônibus da caravana foi tentativa de homicídio. Não estávamos lidando com manifestantes. Mas, com criminosos. E a mídia corporativa minimizou tal ocorrência.

X - CONCLUSÃO
Assistimos ao noticiário televiso como entretenimento, sem o senso crítico aguçado. Por isso não percebemos quando imagens exibidas durante narrativas não condizem com o que diz o apresentador. Depois do estudo que fiz no doutoramento, vendo e revendo por algumas vezes cada segundo do noticiário, nunca mais consegui ficar diante da televisão em suposto noticiário. 

Não só as mídias sócias são difusoras de fake News. O noticiário televisivo minimiza, amplia e oculta ocorrências, de acordo com os interesses, manipulando, portanto, a opinião da população que o assiste. A defesa da liberdade de imprensa não pode se confundir com a defesa da liberdade de empresa comunicação por difusão de sons e imagens, com difusão de versões noticiosas sem de que tal comportamento resulte responsabilização.



*João Batista Damasceno é doutor em Ciência Política (Teoria Política) pelo Programa de Pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal Fluminense /PPGCP-UFF (2012). Mestre em Ciência Política pelo Programa de Pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro /PPGCP-UFRJ (2005). Mestre em Ciência do Desporto pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro/PPGCD-UERJ (2000). Graduado em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro/IFCS-UFRJ (1990). Graduado em Direito pela Universidade Federal Fluminense (1987). Professor Adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ, lotado no Departamento de Teorias e Fundamentos do Direito da Faculdade de e Juiz de direito de entrância especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, titular do 4º cargo de Juiz de Direito Substituto de Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Ex-coordenador e membro da Associação Juízes para a Democracia/AJD, sócio honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros/IAB e associado efetivo da Associação Brasileira de Imprensa/ABI.


Referências bibliográficas:
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GARAPON, Antoine. O Juiz e a democracia: o guardião das promessas. 2a. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001. 
MORAES, Denis de. “O capital da mídia na lógica da globalização”. In Moraes, Denis de (Org.). Por uma Outra Comunicação – Mídia, Mundialização Cultural e Poder. Rio de Janeiro: Record, 2004.
MORAIS, Fernando. Chatô: o rei do Brasil, a vida de Assis Chateuabriand. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
MOREIRA, Sonia Virgínia.  Rádio palanque – fazendo política no ar. Rio de Janeiro: Mil Palavras, 1998.
MOREIRA, Sonia Virgínia.  O Rádio no Brasil. Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1991.
SANTOS, Theotônio. Revolução científico-técnica e capitalismo contemporâneo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1983.
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