OPINIÃO

CONSÓCIOS

Sexta, 10 Fevereiro 2023 14:56

A natureza e proteção das obras geradas pelo Chat Gpt e outros sistemas de Inteligência Artificial

(RESUMO: Ferramentas e tecnologias emergentes como “Chat GPT” desafiam a aplicação das bases naturais do direito autoral e também causam problemas éticos que demandam enfrentamento urgente)

O tema inteligência artificial, com toda a pletora de incompreensões conceituais que carrega, está inegavelmente em voga. Um dos pilares da chamada “Quarta Revolução Industrial”, a IA também convoca atenção do mundo jurídico, que tem acompanhado o assunto com misto de perplexidade e no afã de tentar disciplinar aquilo que ainda não tem massa crítica suficiente para ser definitivamente resolvido; do que resultou da necessidade de proposições como o PL nº 21-A/2020, “Marco legal do desenvolvimento e uso da Inteligência Artificial”, que inclusive prevê, salvo modificação ulterior, modelo de responsabilidade subjetiva para sistemas de inteligência artificial (art. 6º, VI).

É certo, porém, que não há como escapar do debate acerca da responsabilidade dos agentes de desenvolvimento e operação de sistemas de inteligência artificial, porque a pandemia de COVID-19, com todas suas nefastas consequências, provocou também a aceleração das transformações digitais, sobretudo das tecnologias emergentes. Como bem pontua a Declaração Europeia sobre os Direitos e Princípios Digitais, “a pandemia de COVID-19 veio alterar radicalmente o papel e a percepção da digitalização nas nossas sociedades e nas nossas economias e acelerar o ritmo dessa digitalização”.


Se tal debate já era turvo o suficiente, eis que muito o atrapalha a mais recente “coqueluche da semana”:  trata-se do “Chat GPT”, o modelo de linguagem treinado pela organização sem fins lucrativos OpenAI para responder perguntas de usuários e auxiliá-los com tarefas de processamento de linguagem natural. O diferencial do Chat GPT em relação a outros chatbots e modelos de linguagem existentes é que se trata de uma ferramenta de IA que gera respostas e conteúdos escritos de forma realista, dinâmica e fluente, em patamares que simulam com grande eficiência o processo discursivo humano, isto tudo graças a eficientes algoritmos de aprendizado e treinamento e acesso a uma imensa base de dados compilada até o ano de 2021.

É verdade que como um modelo GPT-3 (Generative Pre-training Transformer), não tem, evidentemente, capacidade de consciência ou vontade, mas a ferramenta já dá conta de polêmicas provavelmente não intencionais. Já se contam casos de trabalhos escolares e acadêmicos gerados inteiramente pelo Chat GPT pela simples inserção de fórmulas simples de pesquisa (v.g., “escreva um artigo sobre o tema x”), a forçar que instituições de ensino modifiquem métodos de avaliação e de ensino  . Também se prevê, com “ares de Cassandra”, que ferramentas análogas de IA serão o cadafalso de diversas profissões  , porque sistemas de IA já se mostraram capazes de alcançar aprovação em disputados vestibulares e seleções de emprego  .

Sem embargo de questões éticas subjacentes, os textos, articulados ou não, gerados por chatbots e modelos de linguagem como o Chat GPT esbarram em questões de licença e de plágio. O modelo de computador em questão foi treinado com base em informações disponíveis até 2021, no entanto, não está inteiramente claro se as informações nas quais se baseia para gerar as respostas a uma dada requisição de usuário são acessáveis com cumprimento de licenças e via remuneração dos respectivos autores. 

Mas e o conteúdo gerado por modelos de linguagem pode ser considerado digno de licença e protegido, pois, como propriedade intelectual? Temática novamente árdua, objeto de debates intensos no direito comprado.

Nesse sentido, rumorosa foi a decisão do Escritório de Direitos Autorais dos Estados Unidos (US Copyright Office) ao negar registro a uma coleção de imagens autonomamente gerada por algoritmos de computador sem contribuição de um ator humano  . De acordo com o órgão, cuja decisão data de 2018 e foi confirmada em 2022, a legislação de direito autoral só protege “os frutos de trabalho intelectual que se baseiam nos poderes criativos da mente humana”, de modo que recusará registro, e reclamação, se confirmado que um ser humano não criou a obra. A decisão tem respaldo em longevos precedentes da jurisprudência norte-americana: no case clássico Burrow-Giles Lithographic Co. v. Sarony, de 1888, a Suprema Corte dos EUA referiu autores necessariamente como humanos, concebendo o direito autoral como “o direito exclusivo de um homem à produção do seu gênio ou intelecto”  .

No cenário do “Velho Continente”, o Tribunal Europeu de Justiça (ECJ) e o Tribunal de Justiça da União Europeia (CJEU), embora não tenham se debruçado extensivamente sobre o conceito de autoria sob prisma da IA, buscaram repetidamente interpretar e delimitar o requisito de originalidade que é base para a proteção autoral desde a Convenção de Berna  , também aderida pelo Brasil. No paradigmático caso Infopaq International A/S v. Danske Dagblades Forening, o Tribunal Europeu bem definiu que os direitos de autor são aplicáveis apenas a uma obra (ou elemento de uma obra) que se expresse como “criação intelectual do próprio autor”  . Paralelamente, o Tribunal de Justiça da UE, no julgamento do caso Eva-Maria Painer v. Standard VerlagsGmbH e Outros, também definiu que uma criação intelectual é do próprio autor se “refletir sua personalidade”, o que ocorrerá quando “o autor foi capaz de expressar suas habilidades criativas na produção da obra mediante escolhas livres e criativas”  .

De tais precedentes se conclui que o autor para assim sê-lo demanda necessariamente ser humano; excluindo-se de proteção como direito autoral as criações exclusivamente oriundas de sistemas artificiais.

Entre nós, modelos de linguagem como o Chat GPT se equiparam, sem grandes polêmicas, a programas de computador para efeitos da Lei do Software (Lei nº 9.609/1998), de modo que a aplicação em si possui proteção equivalente àquela conferida por obras literárias na forma da Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/1998); sendo prescindível (porém recomendável) o registro respectivo (art. 18). De outra forma, a Lei de Direitos Autorais consagra repetidamente a fisicalidade como condição de autoria, tanto ao estabelecer que autor é a “pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica” (art. 11) – embora a proteção também se possa estender a pessoas jurídicas – quanto ao definir obra intelectual como “criações do espírito” (art. 7º), o que também exclui de qualquer proteção as obras e conteúdos gerados exclusivamente por meios computacionais.

Tais conclusões nada impedem a expansão do conceito de autor, de futura proposição legislativa, para albergar também as obras geradas exclusivamente por aplicações de IA, a exemplo dos próprios modelos de linguagem, considerando-se a própria tecitura abstrata da Convenção de Berna. No atual estado da arte, porém, exclui-se proteção a nível de direito autoral, mantendo-se a condição e o espírito estritamente humanos como pressupostos para consideração de criações genuinamente intelectuais.
 

 

Luiz Cláudio Allemand
Advogado. Mestre em Direito Tributário pela Universidade Cândido Mendes/Rio de Janeiro. Mestre em Direito Internacional pela Steinbeis University Berlin. Presidente da Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem da Cindes/Findes-ES. Ex-ouvidor e conselheiro do Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Diretor Jurídico da FIESP. Associado Efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB. E-mail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it..


 

Américo Ribeiro Magro
Advogado. Mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Especialista em Interesses Difusos e Coletivos pelo Centro Universitário Antônio Eufrásio de Toledo. Consultor e autor de obras sobre Direito Digital e Proteção de Dados. Contato: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it..

[1] THE NEW YORK TIMES. Alarmed by A.I. Chatbots, Universities Start Revamping How They Teach. Disponível em: https://www.nytimes.com/2023/01/16/technology/chatgpt-artificial-intelligence-universities.html. Acesso nesta data.
[2] THE ATLANTIC. How ChatGPT Will Destabilize White-Collar Work. Disponível em: https://www.theatlantic.com/ideas/archive/2023/01/chatgpt-ai-economy-automation-jobs/672767/. Acesso nesta data.
[3] INSIDER. An AI rival to ChatGPT passed a university level law and economics exam, and did better than many humans, professor says. Disponível em: https://www.businessinsider.com/ai-financed-by-sam-bankman-fried-passed-law-economics-exam-2023-1. Acesso nesta data.
[4] UNITED STATES COPYRIGHT OFFICE. Disponível em: https://www.copyright.gov/rulings-filings/review-board/docs/a-recent-entrance-to-paradise.pdf. Acesso nesta data.
[5] LIBRAY OF CONGRESS. Disponível em: https://tile.loc.gov/storage-services/service/ll/usrep/usrep111/usrep111053/usrep111053.pdf. Acesso nesta data.
[6] DELTORN, Jean-Marc; MACREZ, Franck. Authorship in the age of machine learning and artificial intelligence. Center for International Intellectual Property Studies Research Paper, nº 2018-10.
[7] UNIÃO EUROPEIA. EUR-Lex. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/en/TXT/?uri=CELEX:62008CJ0005. Acesso nesta data.
[8] UNIÃO EUROPEIA. EUR-Lex. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX%3A62010CJ0145. Acesso nesta data.

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